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Por que a Gestalt-terapia é política? Uma reflexão sobre clínica, sociedade e cuidado

  • Foto do escritor: Géssica Dorneles
    Géssica Dorneles
  • 30 de jul.
  • 3 min de leitura

A Gestalt-terapia nasceu como um gesto de ruptura.


Desde suas origens, essa abordagem se posiciona contra discursos hegemônicos e normativos — não apenas no campo da psicologia, mas também no modo de entender a vida, o sofrimento e a relação entre pessoa e sociedade. Mais do que uma técnica terapêutica, a Gestalt-terapia é um pensamento situado. Um discurso clínico que, como todo discurso, carrega uma dimensão política.


Mas por que — e em que sentido — podemos afirmar que a Gestalt-terapia é política?


A psicoterapia, afinal, não é neutra. Toda teoria psicológica parte de uma visão de mundo, de um modo de compreender a experiência e o sujeito. Como nos lembra Belmino (2020), cada abordagem sustenta uma proposta política — ainda que muitas vezes essa dimensão esteja disfarçada de neutralidade científica. As teorias não apenas descrevem a realidade: elas produzem efeitos, criam sentidos, constroem modos de existir. Por isso, o trabalho clínico é sempre um ato político.



Um pano de fundo contra-hegemônico

O pensamento gestáltico nasce a partir de múltiplas influências filosóficas, sociais e culturais que denunciam a fragmentação e a desumanização do sujeito. Seus fundadores estavam imersos em debates da contracultura, em críticas ao racionalismo e ao positivismo, em movimentos libertários e comunitaristas. Inspiraram-se no existencialismo, no holismo, na fenomenologia e na filosofia do diálogo — atravessados pela arte, pela literatura, pela dança, pelo taoismo e pelo zen budismo. A Gestalt-terapia se constituiu como resposta aos atravessamentos históricos e políticos do seu tempo — e permanece viva quando se deixa afetar pelos atravessamentos do nosso.


gestalt-terapia política
Foto tirada de livros de Gestalt Terapia - Clinica do Indizivel

Desde o livro Gestalt Therapy (PHG, 1951), a abordagem gestáltica rompe com dicotomias rígidas como indivíduo vs. sociedade, subjetivo vs. objetivo, interno vs. externo. Em seu lugar, propõe uma teoria da experiência constituída em um campo intersubjetivo. Não se trata, portanto, de uma teoria do sujeito, mas de uma teoria do campo: tudo é relação, tudo é contexto.


A clínica como território político

Laura Perls, cofundadora da abordagem, dizia que seu trabalho era político justamente por ajudar as pessoas a pensarem de forma independente, a se desenredarem das confluências. E esse gesto, ainda que discreto, carrega uma potência transformadora.


A clínica gestáltica reconhece que o sofrimento não é apenas interno — ele é atravessado por desigualdades, por normatividades, por estruturas de poder que organizam o campo em que vivemos. Por isso, cuidar não é apenas aliviar sintomas, mas sustentar perguntas. É acolher o desvio, escutar o que não tem lugar, romper com silenciamentos. É resistir à tentação de diagnosticar como patologia o que, muitas vezes, é forma legítima de resistência à violência estrutural.


Falar da dimensão política da clínica não é fazer militância no consultório — é fazer do cuidado um espaço implicado. Um espaço que não naturaliza o sofrimento como falha individual, mas que reconhece a vulnerabilidade do campo e a complexidade das experiências. Como lembra Belmino, “se o sofrimento é relacional, os efeitos da psicoterapia extrapolam as paredes dos consultórios”.


Manter o discurso vivo

Desenvolver uma consciência política da nossa prática é, antes de tudo, situá-la. É compreender em que chão ela foi construída — e com quais forças ela ainda dialoga. Mas é também mantê-la viva e aberta: atualizada pelas urgências do nosso tempo, pelas vozes que antes foram silenciadas, pelas experiências que insistem em existir apesar das exclusões.


A Gestalt-terapia brasileira, nesse sentido, tem diante de si o desafio de criar um discurso próprio — não apenas reproduzir formas introjetadas de leitura eurocêntrica ou norte-americana. Precisamos cultivar uma prática clínica comprometida com nossa história, com nossa gente, com os modos próprios de sofrimento e resistência que emergem em nosso campo.


Como afirma Diogo Boccardi, uma abordagem gestáltica, entre nós, será também “anticapitalista, anticolonialista, anticapacitista. Será solidária, feminista, antirracista. Será estratégica, política, poética, amorosa, agressiva”.


Porque a clínica, para ser potente, precisa ser também crítica. E, para ser ética, precisa ser implicada.


Referências

Belmino, J. P. A. (2020). Gestalt-terapia e sociedade: por uma clínica da implicação. Curitiba: Appris.

Boccardi, D. O. (2021). A clínica do comum. In J. P. A. Belmino & C. L. Bezerra (Orgs.), Clínica e sociedade: ensaios g

estálticos para um tempo de urgência (pp. 179–187). São Paulo: Zagodoni.

Perls, L. (2004). Viviendo en los límites. México: Plaza y Valdés Editores.

Perls, F. S., Hefferline, R. F., & Goodman, P. (1997). Gestalt Therapy: Excitement and growth in the human personality. Gouldsboro, Maine: The Gestalt Journal Press. (Obra original publicada em 1951)


 
 
 

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